CAPÍTULO 16

 

NÃO SE PODE SERVIR A DEUS E A MAMON

Salvação dos ricos.- Guardar-se da avareza.- Jesus na casa de Zaqueu.- Parábola do mau rico.- Parábola dos talentos.- Utilidade providencial da fortuna.- Provas de riqueza e miséria.- Desigualdade das riquezas.- Instruções dos Espíritos:    A verdadeira propriedade.- Emprego da fortuna.- Desprendimento dos bens terrestres.- Transmissão da fortuna.

 

SALVAÇÃO DOS RICOS

1.Ninguém pode servir a dois senhores; porque, ou odiará a um e amará a outro, ou se afeiçoará a um e desprezará o outro. Não podeis servir ao mesmo tempo, a Deus e a Mamon.(São Lucas, cap. XVI, v.13)

2.Então um jovem se aproximou dele e lhe disse: Bom Mestre, o que é preciso que eu faça para adquirir a vida eterna? Jesus lhe respondeu: Por que me chamais bom? Só Deus é bom. Se quereis entrar na vida, guardai os mandamentos. Quais mandamentos? Disse-lhe. Jesus lhe disse: Não matareis; não cometereis adultério; não furtareis; não direis falso testemunho. Honrai a vosso pai e a vossa mãe, e amai o vosso próximo como a vós mesmos.

O jovem lhe respondeu: Tenho guardado todos esses mandamentos desde a minha juventude; que me falta ainda? Jesus Lhe disse: Se quereis ser perfeito, ide, vendei o que tendes e daí-o aos pobres, e terei um tesouro no céu; depois, vinde e me segui.

O jovem, ouvindo essas palavras, foi-se embora muito triste, porque tinha muitos bens. E Jesus disse aos seus discípulos. Em verdade vos digo que é bem difícil que um rico entre no reino dos céus. Digo-vos ainda uma vez: É mais fácil um camelo passar por um buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino dos Céus (1). (São Mateus, cap. XIX, v. de 16 a 24. São Lucas, cap. XVIII, v. de 18 a 25. São Marcos, cap. X, v. 17 a 25)

 

GUARDA-SE DA AVAREZA

3.Então um homem lhe disse no meio da multidão: Mestre, dizei a meu irmão que divida comigo a herança que nos coube. Mas Jesus Lhe disse: Ó homem! Quem me estabeleceu para vos julgar ou fazer partilhas? Depois lhe disse: Tende cuidado em vos guardar de toda avareza; porque em qualquer abundância que o homem esteja, sua vida não depende dos bens que ele possua.

E lhe disse em seguida esta parábola. Havia um homem rico, cujas terras tinham produzido extraordinariamente; e ele mantinha em si estes pensamentos: que farei, porque não tenho lugar onde eu possa encerrar tudo o que colhi? Eis, disse ele, o que farei: Derrubarei meus celeiros e os construirei maiores e aí colocarei toda a minha colheita e todos os meus bens; e direi à minha alma: Minha alma, tu tens muitos bens reservados para vários anos; repousa, come, bebe, ostenta. Mas Deus ao mesmo tempo disse a este homem: Insensato que és! Vai ser retomada tua alma esta noite mesmo; e para quem será o que amontoaste?

É isso o que acontece àquele que amontoa tesouros para si mesmo, e que não é rico diante de Deus.(São Lucas, cap. XII, v. 13 a 21)

 

JESUS NA CASA DE ZAQUEU

4.Jesus, tendo entrado em Jericó, passava pela cidade; e havia um homem chamado Zaqueu, chefe dos publicanos e muito rico que, tendo vontade de ver Jesus para conhecê-lo, não o podia por causa da multidão, porque ele era muito pequeno; por isso correu á frente e subiu a um sicômoro para vê-lo, porque ele devia passar por ali; Jesus, tendo chegado a esse lugar, olhou para cima e, tendo-o visto, Lhe disse: Zaqueu, apressai-vos em descer, porque é preciso que eu me aloje hoje em vossa casa. Zaqueu desceu logo e o recebeu com alegria. Vendo isso, todos murmuravam dizendo: Ele foi alojar-se na casa de um homem de má vida (ver Introdução: art. Publicanos).

Entretanto, Zaqueu, apresentando-se diante do Senhor, lhe disse: eu dou a metade dos meus bens aos pobres; e se causei dano a alguém, no que quer que seja, eu lhe retribuirei em quádruplo. Sobre o que Jesus lhe disse: Esta casa recebeu hoje a salvação, porque este é também filho de Abraão; porque o filho do homem veio para procurar e para salvar o que estava perdido. (São Lucas, cap. XIX, v. de 1 a 10).

 

PARÁBOLA DO MAU RICO

5.Havia um homem rico, que se vestia de púrpura e de linho, e que se tratava magnificamente todos os dias. Havia também um pobre chamado Lázaro, estendido à sua porta, todo coberto de úlceras, que quisera se saciar com as migalhas que caíam da mesa do rico; mas ninguém lhas dava, e os cães vinham lamber-lhes as feridas. Ora, aconteceu que esse pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão. O rico morreu também e teve o inferno por sepulcro. E quando estava nos tormentos, levantou os olhos para o alto e viu Abraão e Lázaro no seu seio; e, gritando, disse estas palavras: Pai Abraão, tende piedade de mim, e enviai-me Lázaro, a fim de que ele molhe a ponta do seu dedo na água para me refrescar a língua, porque eu sofro tormentos extremos nesta chama.

Mas Abraão lhe respondeu: Meu filho, lembrai-vos que haveis recebido vossos bens em vossa vida e Lázaro não teve senão males; por isso, ele está agora na consolação, e vós nos tormentos.

Além disso, há para sempre um grande abismo entre nós e vós; de sorte que aqueles que querem passar daqui para vós não o podem, como ninguém também pode passar para aqui do lugar em que estais.

O rico lhe disse: Eu vos suplico, pois, pai Abraão, enviá-lo à casa de meu pai, onde tenho cinco irmãos, a fim de que lhes ateste estas coisas, de medo que eles lhe venham também para este lugar de tormentos. Abraão lhe replicou: Eles têm Moisés e os profetas; que os escutem. –Não, disse ele, pai Abraão, mas se alguns mortos procurá-los, eles farão penitência. Abraão lhes respondeu: Se eles não escutam Moisés nem os profetas, não crerão mais do que neles, quando mesmo algum dos mortos ressuscitasse.(São Lucas, cap. XVI, v. de 19 a 31).

 

PARABÓLA DOS TALENTOS

6.O Senhor age como um homem que, devendo fazer uma longa viagem para fora do país, chamou seus servidores e lhes colocou nas mãos os seus bens. E tendo dado cinco talentos a um, dois a outro e um a outro, segundo a capacidade diferente de cada um, e logo partiu. Aquele, pois, que tinha recebido cinco talentos, foi-se embora; negociou com seu dinheiro e ganhou cinco outros. Aquele que havia recebido dois, ganhou da mesma forma outros dois. Mas aquele que não havia recebido senão um, foi cavar na terra e aí escondeu o dinheiro do seu senhor. Muito tempo depois, o senhor desses servidores tendo retornado, pediu-lhes conta.

E aquele que havia recebido cinco talentos veio lhe apresentar cinco outros, dizendo-lhe: Senhor, me havíeis colocado cinco talentos nas mãos, eis aqui cinco outros que ganhei. Seu senhor lhe respondeu: Bom e fiel servidor, porque fostes fiel em pouca coisa eu vos estabelecerei sobre muitas outras; entrai no gozo do vosso Senhor.

Aquele que havia recebido dois talentos veio logo se apresentar a ele, dizendo-lhe: Senhor, me havíeis colocado dois talentos nas mãos, eis aqui dois outros que ganhei. Seu senhor lhe respondeu: Bom e fiel servidor, porque fostes fiel em pouca coisa eu vos estabelecerei sobre muitas outras; entrai no gozo do vosso Senhor.

Aquele que não havia recebido senão um talento, veio em seguida e lhe disse: Senhor, sei que sois um homem duro, que ceifais onde não haveis semeado, e colheis onde nada haveis empregado; por isso, como eu o temia, escondi vosso talento na terra; ei-lo, restituo o que é vosso. Mas seu senhor lhe respondeu: Servidor mau e preguiçoso, sabíeis que ceifo onde não semeei, e que colho onde nada empreguei, devíeis, pois, colocar meu dinheiro nas mãos dos banqueiros, a fim de que, no meu retorno, eu retirasse com juro o que era meu. Que se lhe tire, pois, o talento que tem, e dêem-no àquele que tem dez talentos; porquanto dar-se-á a todos aqueles que já têm, e eles serão cumulados de bens; mas, para aquele que não tem, tirar-se-lhe-á mesmo o que pareça Ter; e que se lance esse servidor inútil nas trevas exteriores; ali haverá choros e ranger de dentes. (São Mateus, cap.XXV, v. de 14 a 30).

 

UTILIDADE PROVIDENCIAL DA FORTUNA

7.Se a riqueza devesse ser um obstáculo absoluto à salvação daqueles que a possuem, assim como se poderia inferir de certas palavras de Jesus interpretadas segundo a letra e não segundo o espírito, Deus, que a dispensa, teria colocado nas mãos de alguns um instrumento de perdição sem recursos, pensamento que repugna à razão. A riqueza, sem dúvida, é uma prova muito difícil, mais perigosa que a miséria pelos seus arrastamentos, as tentações que dá e a fascinação que exerce; e o excitante supremo do orgulho, do egoísmo e da vida sensual; é o laço mais poderoso que liga o homem à Terra e afasta seus pensamentos do céu; produz uma tal vertigem que se vê, freqüentemente, aquele que passa da miséria a fortuna esquecer depressa a sua primeira posição, aqueles que o dotaram, aqueles que o ajudaram, e tornar-se insensível, egoísta e vão. Mas do fato de tornar o caminho difícil, não se segue que o torne impossível, e não possa tornar-se um meio de salvação nas mãos daquele que dela sabe servir, como certos venenos podem devolver a saúde, se são empregados a propósito e com discernimento.

Quando Jesus disse ao jovem que o interrogou sobre os meios de ganhar a vida eterna: "Desfazei-vos de todos os vossos bens e segui-me", ele não entendia estabelecer como princípio absoluto que cada um deve se despojar daquilo que possui, e que a salvação só tem esse preço, mas mostrar que o apego aos bens terrestres é um obstáculo à salvação. Esse jovem, com efeito, se acreditava quite porque tinha observado certos mandamentos e, todavia, recua ante a idéia de abandonar seus bens; seu desejo de obter a vida eterna não ia até esse sacrifício.

A proposição que Jesus lhe fez era uma prova decisiva para pôr a descoberto o fundo do seu pensamento; ele podia, sem dúvida, ser um perfeito homem honesto, segundo o mundo, não fazer mal a ninguém, não maldizer seu próximo, não se vão nem orgulhoso, honrar a seu pai e a sua mãe; mas não tinha a verdadeira caridade, porque sua virtude não ia até à abnegação. Eis o que Jesus quis demonstrar; era uma aplicação do princípio: Fora da caridade não há salvação.

A conseqüência desses palavras, tomadas em sua acepção rigorosa, seria a abolição da fortuna como nociva à felicidade futura, e como fonte de uma multidão de males na Terra, e seria, além disso, a condenação do trabalho que a pode obter; conseqüência absurda que conduziria o homem à vida selvagem, e que, por isso mesmo, estaria em contradição com a lei do progresso, que é uma lei de Deus.

Se a riqueza é a fonte de muitos males, se ela excita tanto as más paixões, se provoca mesmo tantos crimes, é preciso tomar-se não a coisa, mas ao homem que dela abusa, como abusa de todos os dons de Deus; pelo abuso, ele torna pernicioso o que lhe poderia ser mais útil; é a conseqüência do estado de inferioridade do mundo terrestre. Se a riqueza não devesse produzir senão o mal, Deus não a teria colocado sobre a Terra; cabe ao homem dela extrair o bem. Se ela não é um elemento direto do progresso oral, é, sem contradita, um poderoso elemento de progresso intelectual.

Com efeito, o homem tem por missão trabalhar pelo aprimoramento material do globo; deve desbravá-lo, saneá-lo, dispô-lo para receber um dia toda a população que a sua extensão comporta; para alimentar essa população que crescer sem cessar, é preciso aumentar a produção; se a produção de uma religião é insuficiente, será preciso ir procurá-la fora. Por isso mesmo, as relações de povo a povo tornam-se uma necessidade; para as tornar mais fáceis é preciso destruir os obstáculos materiais que as separam, tornar as comunicações mais rápidas. Para esses trabalhos, que são a obra dos séculos, o homem teve de tirar materiais até das estranhas da terra; procurou na Ciência os meios de executá-los mais segura e rapidamente; mas para realizá-los lhe foram precisos recursos: a necessidade fê-lo criar a riqueza, como o fez descobrir a ciência. A atividade, necessitada por esses mesmos trabalhos, aumenta e desenvolve a sua inteligência, que ele concentra primeiro na satisfação das necessidades materiais, o ajudará mais tarde a compreender as grandes verdades morais. A riqueza, sendo o primeiro meio de execução, sem ela não mais grandes trabalhos, não mais atividade, nem estímulo, nem pesquisas; é pois, com razão, considerada um elemento de progresso.

 

DESIGUALDADE DAS RIQUEZAS

8. A desigualdade das riquezas é um desses problemas que se procura em vão resolver, se não se considera a vida atual. A primeira questão que se apresenta é essa: Porque todos os homens não são igualmente ricos? Não o são por uma razão muito simples: é que eles são igualmente inteligentes, ativos e laboriosos para adquirir, nem moderados e previdentes para conservar. Aliás, é um ponto matematicamente demonstrado que a fortuna, igualmente repartida, daria a cada qual, uma parte mínima e insuficiente; que, supondo-se essa repartição feita, o equilíbrio estaria rompido em pouco tempo, pela diversidade dos caracteres e das aptidões; que, supondo-a possível e durável, cada um tendo apenas do que viver, isso seria o aniquilamento de todos os grandes trabalhos que concorrem para o progresso e o bem-estar da humanidade; que, supondo-se que ela desse a cada um o necessário, não haveria mais o aguilhão que compele as grandes descobertas e aos empreendimentos úteis. Se Deus a concentra em certos pontos, e porque daí ele se derrama em quantidade suficiente segundo as necessidades.


Admitindo-se isso, pergunta-se porque Deus a dá a pessoas incapazes para fazê-la frutificar para o bem de todos. Aí ainda está uma prova da sabedoria e da bondade de Deus. Dando o homem o livre arbítrio, quis que ele alcançasse, por sua própria experiência, a distinção do bem e do mal, e que a prática do bem fosse o resultado dos seus esforços e da sua própria vontade. Ele não deve ser conduzido fatalmente, nem ao bem nem ao mal, sem o que não seria se não um instrumento passivo e irresponsável, como os animais. A fortuna é o meio de prová-lo moralmente; mais como, ao mesmo tempo, é um poderoso meio de ação para o progresso, Deus não quer que ela fique muito tempo improdutiva e, por isso, a desloca incessantemente. Cada um deve possuí-la para experimentar servir-se dela, e provar o uso que dela sabe fazer; mais como a há impossibilidade material de que todos a tenham ao mesmo tempo; que, aliás, se todo mundo a possuísse, ninguém trabalharia e o aprimoramento do globo com isso sofreria, cada uma a possui a seu turno: quem não a tem hoje, já a teve ou terá numa outra existência, e quem a tem agora, poderá não tê-la mais amanhã. Há ricos e pobres porque Deus, sendo justo, cada um deve trabalhar a seu turno; a pobreza é para uns a prova da paciência e da resignação; a riqueza é para outros a prova da caridade e da abnegação.

Deplora-se com razão o lamentável uso que certas pessoas fazem de sua fortuna, as ignóbeis paixões que a cobiça provoca, e se pergunta se Deus é justo em dar a riqueza a tais pessoas. É certo que se o homem não tivesse senão uma só existência, nada justificaria essa repartição dos bens da Terra; mas se, em lugar de limitar a visão à vida presente, considerar-se o conjunto da existências, vê-se que tudo se equilibra com justiça. O pobre, pois, não tem mais motivo para acusar a Providência, nem para invejar os ricos, e os ricos não têm mais do que se glorificar pelo que possuem. Se dela abusam, não será nem com decretos, nem com as leis suntuárias, que se remediará o mal; as leis podem, momentaneamente, mudar o exterior, mas não podem mudar o coração: por isso, elas não têm senão uma duração temporária, e são sempre seguidas de uma reação mais desenfreada. A fonte do mal está no egoísmo e no orgulho; os abusos de toda espécie cessarão por si mesmos quando os homens se regerem pela lei da caridade.

 

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

A VERDADEIRA PROPRIEDADE

9. O homem não possui de seu senão o que pode levar deste mundo. O que se encontra ao chegar, e o que se deixa ao partir, goza durante a sua permanência na Terra; mas, uma vez que é forçado a abandoná-lo, dele não tem senão o gozo e não a posse real. Que possui eles, pois? Nada daquilo que é para uso do corpo, tudo o que é de uso da alma: a inteligência, os conhecimentos, as qualidades morais; eis o que traz e o que leva, o que não está no poder de ninguém lhe tirar, o que lhe servirá mais ainda no outro mundo do que neste; dele depende ser mais rico em sua partida do que na sua chegada, porque daquilo que tiver adquirido em bem depende a sua posição futura. Quando um homem vai para um país longínquo, compõe a sua bagagem de objetos usáveis no país; mas não se carrega daqueles que lhe seriam inúteis. Fazei, pois, o mesmo para a vida futura, e fazei provisão de tudo o que poderá nela vos servir.

Ao viajor que chega a uma estalagem, se dá um belo alojamento se pode pagá-lo; àquele que pode pouca coisa, se dá um menos agradável; quanto àquele que nada tem, vai deitar sobre a palha. Assim ocorre com o homem na sua chegada ao mundo dos Espíritos: seu lugar nele está subordinado ao que tem; mas não o ouro que o paga. Não se lhe perguntará: Quanto tínheis sobre a Terra? Que posição nela ocupáveis? Éreis príncipe ou operário? Mas, se lhe perguntará: O que dela trazeis? Não se computará o valor dos seus bens nem dos seus títulos, mas a soma das suas virtudes; ora, a esse respeito, o operário pode ser mais rico do que o príncipe. Em vão alegará que, antes da sua partida, pagou a sua entrada com ouro e se lhe responderá: Os lugares aqui não se compram, eles se ganham pelo bem que se fez; com o dinheiro terrestre, pudestes comprar campos, casas, palácios; aqui tudo se paga com as qualidades do coração. Sois rico dessas qualidades? Sede benvindo, e ide ao primeiro lugar onde todas as felicidades vos esperam, sois pobres? Ide ao último, onde sereis tratado em razão do que tendes. (PASCAL, Genebra, 1860).

10. Os bens da Terra pertencem a Deus, que os dispensa à sua vontade, e o homem deles não é senão o usufrutuário, o administrador mais ou menos íntegro e inteligente. Eles são tampouco a propriedade individual do homem, porque Deus freqüentemente, frustra todas as previsões, e a fortuna escapa daquele que crê possuí-la pelos melhores títulos.
Direis, talvez, que isso se compreende para a fortuna hereditária, mas que não ocorre o mesmo com aquela que se adquiriu pelo trabalho. Sem nenhuma dúvida, se há uma fortuna legítima, é esta, quando adquirida honestamente, porque uma propriedade só é legitimamente adquirida quando, para a possuir, não se faz mal a ninguém. Será pedida conta de uma moeda mal adquirida em prejuízo de outrem. Mas do fato de um homem dever sua fortuna a si mesmo, leva mais dela em morrendo? Os cuidados que ele toma em transmiti-la aos seus descendentes não são, freqüentemente, supérfluos? Porque se Deus não quer que ela lhe chegue às mãos, nada, poderá prevalecer contra sua vontade. Pode dela usar e abusar em sua vida sem ter contas a prestar? Não, em lhe permitindo adquiri-la, Deus, pôde querer recompensar nele, durante esta vida, seus esforços, sua coragem, sua perseverança; mas se não a fez servir senão a satisfação de seus sentidos ou de seu orgulho, se ela se torna uma causa de queda em suas mãos, melhor fora para ele que não a possuísse; perde de uma lado o que ganhou de outro, anulando o mérito do seu trabalho, e quando deixar a Terra, Deus lhe dirá que já recebeu a sua recompensa. (M., ESPÍRITO PROTETOR, Bruxelas, 1861)

 

EMPREGO DA FORTUNA

11. Não podeis servir a Deus e a Mamon; retende bem isto, vós a quem o amor do ouro domina, vós que venderíeis vossa alma para possuir tesouros, porque eles podem vos elevar acima dos outros homens e vos dar as alegrias das paixões; não, não podeis servir a Deus e Mamon! Se, pois, sentis vossa alma dominada pelas cobiças da carne, apressai-vos em sacudir o jugo que vos oprime, porque Deus, justo e severo, vos dirá: Que fizeste, dispenseiro infiel, dos bens que te confiei? Esse poderoso móvel das boas obras, não fizeste servir senão à tua satisfação pessoal.

Qual é, pois, o melhor emprego da fortuna? Procurai nestas palavras: "Amai-vos uns aos outros", a solução do problema; aí está o segredo de bem empregar as riquezas. Aquele que está animado de amor ao próximo tem sua linha de conduta toda traçada; o emprego que apraz a Deus é o da caridade; não essa caridade fria e egoísta que consiste em derramar em torno de si o supérfluo de uma existência dourada, mas essa caridade cheia de amor que procura o infeliz, que o reergue sem humilhá-lo. Rico, dá do teu supérfluo; fazes melhor: dá do teu necessário, porque o teu necessário ainda é supérfluo, mas dá com sabedoria. Não repilas o queixume com medo de seres enganado, mas vai a fonte do mal; alivia primeiro, informa-te em seguida, e vê se o trabalho, os conselhos, afeição mesma não serão mais eficazes do que a tua esmola. Espalha ao redor de ti, com o bem-estar, o amor de Deus, o amor ao trabalho e o amor ao próximo. Coloca tuas riquezas sobre um capital que não te faltará jamais e te trará grandes interesses: as boas obras. A riqueza da inteligência deve te servir como a do ouro; espalha ao redor de ti os tesouros da instrução; espalha sobre os teus irmãos os tesouros do teu amor, e eles frutificarão. (CHEVERUS, Bordéus, 1861).

12. Quando considero a brevidade da vida, fico dolorosamente impressionado pela incessante preocupação da qual o bem-estar material é para vós o objeto, ao passo que ligais tão pouca importância e não consagrais senão pouco ou nenhum tempo ao vosso aperfeiçoamento moral, que deve vos ser contado para a eternidade. Crer-se-ia, ao ver a atividade que desdobrais, que ela se prende a uma questão do mais alto interesse para a Humanidade, enquanto que não se trata, quase sempre, senão em vos esforçar para satisfazer necessidades exageradas, a vaidade, ou vos entregar aos excessos. Quantas penas, cuidados e tormentos se inflige, quantas noites em sono para aumentar uma fortuna, freqüentemente mais do que suficiente! Por cúmulo da cegueira, não é raro ver aqueles a quem um amor imoderado da fortuna e dos gozos que ela proporciona, sujeita a um trabalho penoso, orgulhar-se de uma existência dita de sacrifício e de mérito, como se trabalhasse para os outros e não para si mesmos. Insensatos! Credes, pois, realmente, que vos será tido em conta os cuidados e os esforços dos quais o egoísmo, a cupidez ou o orgulho são móveis, enquanto que negligenciais o cuidado do vosso futuro, assim como os deveres da solidariedade fraternal impostos a todos o que gozam das vantagens da vida social! Não haveis pensado senão em vosso corpo; seu bem-estar, seus gozos foram o único objeto de vossa solicitude egoística; por ele que morre, haveis negligenciado o vosso Espírito que viverá sempre. Assim, esse senhor tão estimado e acariciado tornou-se o vosso tirano; comando vosso Espírito que se fez seu escravo. Estava aí o objeto da existência que Deus vos havia dado? (UM ESPÍRITO PROTETOR. Cracóvia, 1861)

13. Ao homem, sendo o depositário, o gerente dos bens que Deus depositou em suas mãos, lhe será pedida severa conta do emprego que deles tiver feito em virtude do seu livre arbítrio. O mau emprego consiste em não fazê-los servir senão à satisfação pessoal; ao contrário, o emprego é bom todas as vezes que dele resulta um bem qualquer para outrem; o mérito é proporcional ao sacrifício que se impõe. A beneficência não é senão um modo do emprego da fortuna; ela alivia a miséria atual: aquieta a fome, preserva do frio e dá asilo àquele que não o tem; mas um dever igualmente imperioso, igualmente meritório, consiste em prevenir a miséria; nisso, sobretudo, está a missão das grandes fortunas, pelos trabalhos de todos os gêneros que podem fazer executar; e devessem elas disso tirar um proveito legítimo, o bem não existiria menos, porque o trabalho desenvolve a inteligência e realça a dignidade do homem sempre confiante em poder dizer que ganhou o pão que come, ao passo que a esmola humilha e degrada. A fortuna concentrada numa só mão deve ser como uma fonte de água viva que derrama fecundidade e bem-estar em torno dela. Ó vós ricos! Se a empregardes segundo os desígnios do Senhor, vosso coração, o primeiro, se saciará nessa fonte benfazeja; tereis nesta vida os inefáveis gozos da alma em lugar dos gozos materiais do egoísta, que deixam o vazio no coração. Vosso nome será abençoado sobre a Terra, e quando a deixardes, o soberano senhor vos dirigirá a palavra da parábola dos talentos:" Ó bom e fiel servidor, entrai no gozo do vosso Senhor". Nessa parábola, o servidor que enterrou na terra o dinheiro que lhe foi confiado, não é a imagem dos avarentos entre as mãos dos quais as fortunas é improdutiva? Se, entretanto, Jesus fala principalmente de esmolas, é porque naquele tempo e naquele país onde ele vivia, não se conheciam os trabalhos que a arte e a indústria criaram depois, e nos quais a fortuna pode ser empregada utilmente para o bem geral. A todos aqueles que podem dar, pouco ou muito, eu direi pois: Daí esmola quando isso for necessário, mas, tanto quanto possível, convertei-a em salário, a fim de que aquele que a recebe, dela não se envergonhe.(FÉNELON, Alger, 1860).

 

DESPRENDIMENTO DOS BENS TERRENOS

14. Venho, meus irmãos, meus amigos, trazer o meu óbolo para vos ajudar a marchar corajosamente no caminho do aprimoramento em que entrastes. Nós nos devemos uns aos outros; não é senão por uma união sincera e fraternal entre Espíritos e encarnados que a regeneração será possível.

Vosso amor aos bens terrestres é um dos mais fortes entraves ao vosso adiantamento moral e espiritual; por esse apego à posse, suprimis as vossas faculdades afetivas em as transportando todas sobres coisas materiais. Sede sinceros; a fortuna dá uma felicidade sem mácula? Quando vossos cofres estão cheios, não sempre um vazio no coração? No fundo deste cesto de flores não há sempre um réptil escondido? Compreendo que o homem que, por um trabalho assíduo e honrado, ganhou a fortuna, experimente uma satisfação, de resto, bem justa; mas, dessa satisfação, muito natural e que Deus aprova, a um apego que absorve todos os outros sentimentos e paralisa os impulsos do coração, há distância; tanta distância quanto da avareza sórdida à prodigalidade exagerada, dois vícios entre os quais colocou Deus a caridade, santa e salutar virtude que ensina ao rico a dar sem ostentação, para que o pobre receba sem baixeza.

Que a fortuna venha de vossa família, ou que a ganhastes pelo vosso trabalho, há uma coisa que não deveis jamais esquecer: é que tudo vem de Deus e retorna a Deus. Nada vos pertence sobre a Terra, nem mesmo o vosso pobre corpo: a morte dele vos despoja, como de todos os bens materiais; sois depositários e não proprietários, disso não vos enganeis; Deus vos emprestou, deveis restituir, e ele vos empresta com a condição de que o supérfluo, pelo menos, reverta para aqueles que não têm o necessário.

Um dos vossos amigos vos empresta uma soma; por pouco sejais honesto, tereis o escrúpulo de pagá-la, e lhe ficareis agradecido. Pois bem, eis a posição de todo homem rico; Deus é o amigo celeste que lhe emprestou a riqueza; não pede para ele senão o amor e o reconhecimento mas exige que, a seu turno, o rico dê também aos pobres, que são seus filhos tanto quanto ele.

O bem que Deus vos confiou excita em vossos corações uma ardente e louca cobiça; haveis refletido, quando vos apegais imoderadamente a uma fortuna perecível e passageira como vós, que um dia virá em que devereis prestar contas as Senhor do que vem dele? Esqueceis que, pela riqueza, estais revestidos do caráter sagrado dos ministros da caridade na Terra para dela serdes os dispensadores inteligentes? Que sois, pois, quando usais em vosso único proveito daquilo que vos foi confiado, senão depositários infiéis? Que resulta desse esquecimento voluntário de vossos deveres? A morte inflexível, inexorável, vem rasgar o véu sob o qual vos escondíeis, e vos força a prestar contas ao amigo que vos ajudara, e que, nesse momento, se reveste, para vós, com a toga do juiz.

É em vão que na Terra, procurais vos iludir, colorindo com o nome da virtude o que, freqüentemente, não é senão egoísmo; que chamais economia e previdência o que não é senão cupidez e avareza, ou generosidade o que não é senão prodigalidade em vosso proveito. Um pai de família, por exemplo, se absterá de fazer a caridade, economizará, amontoará ouro sobre ouro, e isso, diz ele, para deixar aos seus filhos o máximo de bens possível e lhes evitar cair na miséria; é muito justo e paternal, convenho, e não se pode censurá-lo por isso; mas está aí o único móvel que o guia? Não é, freqüentemente, um compromisso com a sua consciência para justificar, aos eus próprios olhos e aos olhos do mundo, seu apego pessoal aos bens terrestres? Entretanto, admito que o amor paternal seja único móvel; é um motivo para esquecer seus irmãos diante de Deus? Quando ele mesmo tem o supérfluo, deixará seus filhos na miséria porque terão um pouco menos que esse supérfluo? Não é sufocar neles o amor ao próximo? Pais e mães, estais em grande erro se credes com isso aumentar a afeição de vossos filhos por vós; em lhes ensinando a ser egoístas para com ou outros, os ensinais a sê-lo para convosco mesmos.

Quando um homem trabalhou bastante, e com o suor de seu rosto amontoou bens, vós o ouvis, freqüentemente, dizes que quando o dinheiro é ganho se lhe conhece melhor o valor; nada é mais verdadeiro. Pois bem! que esse homem que confessa conhecer todo o valor do dinheiro, faça a caridade segundo seus meios, e terá mais mérito do que aquele que nascido na abundância, ignora as rudes fadigas do trabalho. Mas se, ao contrário, for egoísta, duro para com os pobres, é bem mais culpado do que os outros; porque, quanto mais se conhece por si mesmo as dores ocultas da miséria, mais se deve procurar aliviá-las nos outros.

Infelizmente, há sempre no homem de posses um sentimento tão forte que o apega á fortuna: é o orgulho. Não é raro ver-se o felizardo atordoar o infeliz que implora a sua assistência com o relato de seus trabalhos e sua habilidade, em lugar de vir ajudá-lo, e acabando por dizer: "Faça o que eu fiz" Segundo ele, a bondade de Deus nada tem em sua fortuna; só a ele cabe todo o mérito; seu orgulho coloca-lhe uma venda nos olhos e tapa os ouvidos; não compreende que, com toda a sua inteligência e sua habilidade, Deus pode derrubá-lo com uma só palavra.

Esbanjar a fortuna não é desapego aos bens terrenos, mas negligencia e indiferença; o homem, depositários desses bens, não tem mais o direito de os dilapidar ou de os confiscar em seu proveito; a prodigalidade não é generosidade mas, freqüentemente, uma forma de egoísmo; aquele que atira ouro a mancheias para satisfazer uma fantasia, não daria uma moeda para prestar serviço.

O desapego aos bens terrestres consiste em apreciar a fortuna pelo seu justo valor, em saber servir-se dela para os outros e não para si, a não sacrificar por ela os interesses da vida futura, a perdê-la sem murmurar se apraz a Deus vo-la retirar. Se, por reveses imprevistos, vos tornardes um outro Job, dizei como ele: "Senhor, vós ma havíeis dado, vós ma haveis tirado; que seja feita a vossa vontade." Eis o verdadeiro desapego. Sede submissos primeiro, tende fé naquele que vos tendo dado e tirado, pode vos restituir; resiste com coragem ao abatimento, ao desespero que paralisam a vossa força; não olvideis jamais; quando Deus vos atingir, que ao lado de maior prova, coloca ele sempre uma consolação. Mas pensei sobretudo, que há bens infinitamente mais preciosos que os da Terra e esse pensamento vos ajudará a vos desapegar destes últimos. O pouco valor que se atribui a uma coisa faz com que menos sensível seja a sua perda.

O homem que se apega aos bens da Terra é como criança que não vê senão o momento presente; aquele que a eles não se prende é como adulto que vê as coisas mais importantes, porque compreende estas palavras proféticas do Salvador: "Meu reino não é deste mundo."


O Senhor não ordena abdicar do que se possui, para se reduzir a uma mendicidade voluntária, e tornar-se uma carga para a sociedade; agir assim seria compreender mal o desapego dos bens terrestres; é um egoísmo de outro gênero, porque é se isentar da responsabilidade de que a fortuna faz pesar sobre aquele que a possui. Deus a dá a quem lhe parece bom para geri-la em proveito de todos; o rico tem, pois, uma missão, missão que pode tornar bela e proveitosa para ele; rejeitar a fortuna quando deus vô-la dá, é renunciar ao benefício do bem que se pode fazer em administrando-a com sabedoria. Saber passar sem ela quando não a tem, saber empregá-la utilmente quando a possui, saber sacrificá-la quando isso é necessário, é agir segundo os desígnios do Senhor. Aquele a quem chegue o que se chama no mundo uma boa fortuna, diga a si mesmo: Meus Deus, vós me enviaste um novo encargo, dai-me a força de cumpri-lo segundo a vossa santa vontade.


Eis, meus amigos, o que eu queria vos ensinar quanto ao desapego aos bens terrestres, resumirei, dizendo: Sabei vos contentar com pouco. Se sois pobres, não invejeis os ricos, porque a fortuna não é necessária à felicidade; se sois ricos não olvideis que esses bens vos estão confiados, e que devereis justificar seu emprego, como sendo tutores. Não sejais depositários infiéis, fazendo-os servir à satisfação do vosso orgulho e da vossa sensualidade; não vos creiais no direito de dispor, unicamente para vós, daquilo que não é senão um empréstimo, e não uma doação. Se não sabeis restituir, não tendes mais o direito de pedir, e lembrai-vos de que aquele que dá aos pobres se quita da dívida que contrai com Deus. (LACORDAIRE, Constantina, 1863).

 

Transmissão da riqueza

15. O princípio segundo o qual o homem não é senão o depositário da fortuna que Deus lhe permite gozar durante a vida, tira-lhe o direito de transmiti-la aos seus descendentes?


O homem pode perfeitamente transmitir, depois de sua morte, do que gozou durante a vida, porque o efeito desse direito está sempre subordinado á vontade de deus que pode, quando quiser, impedir seus descendentes de gozá-lo; é assim que se vê desmoronarem fortunas que pareciam solidamente estabelecidas. A vontade do homem em manter sua fortuna na sua descendência é, pois, impotente, o que não lhe tira o direito de transmitir o empréstimo que recebeu, uma vez que Deus o retirará quando julgar conveniente. (SÃO LUÍS, Paris, 1860).

(1) Esta figura audaciosa pode parecer um pouco forçada, porque não se vê a relação que existe entre um camelo e uma agulha. Isso resulta de que, em hebreu, a mesma palavra se emprega para designar cabo e camelo. Na tradução se lhe deu esta última acepção; é provável que a primeira era a que estava no pensamento de Jesus; ela é, pelo menos, mais natural. Voltar acima


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